Pirenópolis só aparenta ser uma cidade do interior. Andando por suas ruas e conhecendo sua gente, vemos que se trata de uma cidade cosmopolita, habitada por personalidades de todo canto do país. Quem poderia imaginar, por exemplo, que uma das divas que encantou o cinema brasileiro na década de 50, a atriz Eliane Lage, viveria numa casa antiga no centro histórico da cidade? Protagonista de filmes como Caiçara e Sinhá Moça, da pioneira Companhia Vera Cruz, em São Paulo, Eliane diz estar revivendo seu sucesso como atriz. Na semana passada, foi homenageada em Brasília, recebendo o título de Comendadora da Ordem de Mérito Cultural, concedido pelo Presidente da República. “Me sinto muito honrada e muito feliz. Estou vivendo uma vida de artista, depois de tanto tempo”, disse ela, sentada em sua cadeira de balanço, na sala de sua casa, onde nos recebeu para uma entrevista. Eliane pediu que não reparássemos nas malas espalhadas pela sala. Ela foi convidada para representar o cinema brasileiro no Festival de Cannes em novembro, na França. Ao ser entrevistada pelo pirenopolis.com.br, a atriz falou de sua carreira, sobre o cinema brasileiro e porque escolheu Pirenópolis para viver.
O que você traz da época em que iniciou sua carreira?
Foi uma experiência muito boa, muito forte. A Vera Cruz estava sendo formada e eu fiz parte deste início, protagonizei o primeiro filme realizado pela companhia, o Caiçara (1950). Foi uma época muito interessante, vieram todos os técnicos de fora, tinha gente da Dinamarca, Inglaterra, Estados Unidos, França, Polônia, enfim...era uma Babel, ninguém se entendia, era tudo muito divertido.
Você declarou em entrevista que nunca se sentiu uma atriz. Por quê?
Realmente não estava nos meus planos ser atriz. Mas eu me apaixonei por um diretor de cinema (Tom Payne) que dizia que em suas veias não corria sangue, corria celulóides, (naquela época a película era feita de celulóide). Como você pode ver, ele nunca iria mudar de idéia. Então eu me apaixonei. Ele dizia que eu era muito fotogênica. E cinema depende muito do diretor. O que o ator precisa é entender bem o que o diretor quer e fazer, porque aí dá certo. Já em teatro é outra coisa. O diretor ensaia várias vezes e quando vai para o palco, é o ator que está encarregado. Em cinema, o diretor manda, olha, vê que não está bom e repete até ficar do jeito que ele vislumbra. Então, na realidade, você não precisa ser uma “atriz”. Agora, dizem que eu estava muito bem, eu nao sei, é difícil calcular. Mas eu sempre calculo que foi graças à técnica de cinema que eu me dei bem, porque realmente eu não tinha feito curso, pois naquela época não havia escola de cinema.
Antigamente as atrizes eram mal vistas pelas famílias, pela sociedade. Você sofreu esse tipo de preconceito?
Não, porque era bem diferente o cinema em São Paulo e no Rio de Janeiro. No Rio havia isso por causas dos filmes das chanchadas produzidos pela Atlântida, e porque as atrizes dançavam, cantavam, no estilo do teatro de revista. Em São Paulo não, foi um movimento muito “classe A”. Todos os granfinos queriam fazer pontas nos filmes. No Rio realmente era mal visto. Por exemplo, minha tia Yolanda Penteado (tia não de parentesco, mas que eu convivia desde os quatro anos de idade), casou-se com Titino Matarazzo, que foi um dos fundadores da Vera Cruz. Então o cinema era uma coisa de elite. Ninguém achou que era esquisito entrar no cinema. A gente pensava, “é a tia que está fazendo”, ou seja, estava em família, todo mundo achava ótimo, não tinha nada de sobrenatural.
Beleza no cinema é fundamental? O que você pensa de atrizes que não passam de um rosto bonito?
Eu acho que a pessoa pode ter talento. Pode nunca ter pisado no palco e ter talento ou de repente ser muito fotogênica. Eu acho que cinema e televisão exigem muito trabalho. Aquilo que você vê na tela, bonitinho, arrumadinho e tal, são dias e dias de muito trabalho. No cinema você faz, refaz e faz de novo. Televisão parece que é bem pior do que cinema, porque é muito corrido. São 40 cenas em um dia. Eu penso que se a pessoa não tem realmente talento e força, não chega a lugar nenhum, não adianta. Por exemplo, eu estive no festival de cinema em Goiânia (Festcine) e estavam comentando de uma atriz que fez um filme de muito sucesso, mas que não teria muito futuro, porque brigava com todo mundo e era muito arrogante. Nesse meio, a pessoa tem que ter humildade, senão não recebe mais convites.
Medalha de comendador recebida da Ordem do Mérito CulturalVocê recebeu uma comenda em nome da República Brasileira, da Ordem do Mérito Cultural. Como foi a cerimônia?
Sim, para mim foi uma surpresa enorme. Fiquei realmente muito honrada. Havia um grupo de pessoas de altíssimo gabarito eu fiquei pasma, muito feliz, naturalmente.
Como você vê o cinema brasileiro hoje?
Existem filmes lindos. Eu assisti à dois no festival de cinema em Goiânia, fora os Dois Filhos de Francisco que eu acho maravilhoso. Eu não gosto de música sertaneja, não iria ver o filme, mas como foi passado no cinema de Pirenópolis, eu fui. Achei o filme extraórdinario, muito bom mesmo, o Ângelo Antônio é fantástico como ator, os meninos são excelentes, a Dira Paes, também é fantástica. Ela inclusive estava no Festcine e ganhou uma premiação. No festival também assisti “Uma vida de menina”, uma história passada em Diamantina no final de 1800 e começo de 1900 e “O diário de uma menina”, um filme muito bom , com uma protagonista excelente. Assisti também ao filme “Uma dificil viagem”, do diretor Geraldo Moraes, com o ator Paulo José, também muito lindo. O cinema nacional está vivendo uma fase muito rica e produtiva.
A crítica cinematográfica às vezes ultrapassa o campo da emoção do espectador e se impõe como verdade. Muita gente criticou a indicação de Dois Filhos de Francisco ao Oscar. Como você avalia essa crítica?
Olha, eu vou te contar uma coisa, eu não leio crítica cinematográfica a uns quinhentos anos porque eu não recebo jornal. Então, eu realmente não posso falar. Agora, um amigo me mandou um texto retirado da internet de uma pessoa que não era crítica de cinema. Ele dizia que havia acordado com dor de cabeca, não tinha tomado café direito, esperou pra ver o filme Dois Filhos de Franciso até uma hora da manhã, foi com fome, contra a vontade, etc., mas quando chegou lá, disse “chorei, paguei um mico horroroso, a mulher do meu lado ficava me olhando e ele se debulhando em lágrimas”! Risos. Quer dizer, essa coisa é muito bonita, eu acho que a crítica de cinema tem que ser peneirada. Esse homem fez tudo pra não gostar, foi um dia péssimo pra ele, ele tinha acordado com o pé esquerdo e adorou o filme. Então, eu acho que não podemos nos basear muito nessas críticas.
Hoje existe um glamour em volta das celebridades. Como era isso na sua época?
Na minha época não tinha isso. Eu fui contratada pela Companhia Vera Cruz, assim como hoje os atores são contratados Globo. Só que a Vera Cruz não queria perder dinheiro, então ele produziam um filme atrás do outro e o artista não tinha tempo. Hoje um filme é lançado e o artista começa a viajar representando o filme nos festivais. Na minha época, mal saíamos de um filme, já estávamos gravando outro. Então não existia tempo nem dinheiro para participarmos dos festivais. O filme Sinhá Moça, por exemplo, ganhou prêmios na Europa e foi para o Festival em Veneza. Foi uma surpresa muito grande, pois nenhum filme brasileiro havia sido premiado até então. Não havia nenhuma bandeira brasileira em Veneza, tiveram que mandar um avião do consulado até Paris para que eles pudessem astear a bandeira. E não tinha ninguém para receber o prêmio. Na época foi o cônsul brasileiro em Veneza. Hoje os artistas andam com medo por que vivem rodeados de fotógrafos. Na minha época não tinha isso. Essa euforia é um fenômeno da televisão. Eu era mais conhecida em São Paulo do que no Rio.
O que a levou a escrever um livro?
Bom, eu tinha uma fazenda aqui, fiquei vinte anos na fazenda cuidando do gado e adorando a vida do campo, só que financeiramente a coisa foi por água abaixo. Acabei vendendo a fazenda e fui viver no sul de Minas na casa de uma das minhas filhas e lá, meu filho me mandou um computador e falou para eu aprender a mexer naquilo, porque ele gostaria de saber mais da minha vida. Aí eu sentei comecei a escrever. Hoje as pessoas dizem que o meu livro as emocionam.
Porque você escolheu Pirenópolis para viver?
Eu sempre sonhei em morar na roça. Tive que viver em São Paulo por causa do cinema. Depois morei em Petrópolis, no estado do Rio, porque era um lugar onde tinha escolas boas e faculdades também. Quando os meninos foram cada um para um lado, estudar e cuidar da vida, eu disse “eu vou para a roça”, que era o que eu sempre quis fazer. Eu gostava muito de Brasília, por causa do céu, do visual...o céu do centro-oeste é muito especial. Então eu vim para o Distrito Federal e fiquei rodando em volta: Unaí, Olhos d´Água, Corumbá. Quando caí aqui foi paixão à primeira vista. Em uma semana comprei um sítio e vim pra cá, estou aqui há 30 anos.
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